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Cerveja de guarda: Quais cervejas posso guardar?

Não existe uma teoria absoluta e incontestável para estabelecer quais os estilos de cerveja que podem evoluir com o envelhecimento em garrafa.

Também não existem muitas literaturas ou experimentos sobre esse tema, muito menos territórios como no caso do vinho ou tradições históricas.

Mas sem dúvida existe uma razão na qual se envelheça cervejas em garrafa e é justamente a primeira que vou elencar abaixo.

Sou um apaixonado por cervejas de guarda e desde o meu “batismo cervejeiro” quase uma década atrás.

Fiz muitos experimentos envelhecendo cervejas em garrafa, ainda hoje as vezes abro algumas das preciosidades “antigas” da minha adega pessoal.

E nesse post vou fornecer uma bússola para os leitores, fruto das minhas experiências pessoais.

Cervejas de Guarda: Conservação x Maturação x Evolução

Antes de começar gostaria de explicar as diferenças entre conservação, maturação e evolução de uma cerveja:

Conservação

Vários agentes na cerveja promovem a conservação, esses agentes podem vir tanto das matérias-primas como do processo de produção, como por exemplo o lúpulo e a pasteurização.

Esses são agentes que sozinhos promovem uma conservação do produto ao longo do tempo, mas que pouco ou nada influenciam na maturação ou evolução sensorial positiva do produto.

Maturação

A maturação de uma cerveja em garrafa é diferente da evolução, pois a maturação pode ser feita em cervejas com uma complexidade médio-baixa.

A maturação é o tempo necessário que cada cerveja precisa para dar o melhor de si, independentemente do estilo

As vezes a cerveja engarrafada ainda “não esta pronta” e geralmente a próxima etapa é feita na própria cervejaria com cervejas que passam por um processo de refermentação, necessitam desse tempo de maturação para estabilizar o produto.

Evolução

Já a evolução é a capacidade que uma cerveja tem de se conservar no tempo, mudando as suas propriedades sensoriais positivamente, transformando aromas, gostos, sabores, texturas e sensações em coisas novas e diferentes que talvez na mesma cerveja “jovem” não teríamos encontrado.

Cervejas de guarda: Vale a pena??

Quase nunca. Essa é a dura realidade em 99% dos casos

Na maioria dos estilos a cerveja é feita para ser consumida jovem e fresca, sem necessidade de afinamento ou envelhecimento.

A maturação em garrafa, as vezes necessária, dura no máximo poucos meses e não anos.

Muitas cervejas de complexidade elevada podem ter um resultado surpreendente em poucos anos de guarda e nos presentear com emoções únicas, mas muito provavelmente podem já ter passado do seu “ápice” sensorial.

A abertura de garrafas de guarda muitas vezes (pelo menos para mim) servem para estudo, é uma ótima ocasião para apreciar as mutações de um produto no apogeu da sua maturidade, emergindo características novas e incomuns.

Consciente do fato que talvez o máximo de sua carga expressiva já tenha passado.

Infelizmente muitas vezes você pode se deparar com um produto apagado e cansado, de características vinosas e licorosas.

Mas não desanime, ainda resta aquele 1% dos casos nos quais a cerveja serve para a guarda, obviamente nesse caso se consideram produtos fora dos parâmetros “normais de uma cerveja”.

Cervejas de guarda: Fatores que favorecem o envelhecimento

São fatores diversos ou isolados, mas que atuam em sinergia e que doam a cerveja potencialidade de longa guarda e evolução em garrafa.

Um dos fatores mais importantes é a graduação alcoólica, cervejas com alto teor alcoólico tendem a ter uma vida mais longa.

O corpo, quanto mais estrutura uma cerveja tem, mais ela suporta o transcorrer do tempo.

Com o passar dos anos as cervejas tendem a desenvolver uma textura e consistência aquosa.

Uma cerveja bem estruturada e com o corpo elevado neutraliza esse efeito, aliás, os fatores: álcool, estrutura e corpo podem se revelar fundamentais para uma correta evolução na garrafa.

O uso elevado de lúpulo (principalmente no início da fervura) ajuda a preservar a cerveja, graças as suas propriedades conservantes. Mas com o passar do tempo o amargor perde força e tende a enfraquecer.

Então partindo de um nível de IBU mais elevado permite-se manter um longo equilíbrio gustativo, esses fatores juntos desenham uma “biometria de cervejas de guarda”.

Um fator muito importante

Resta um último fator, que na minha opinião é o mais importante do que todos os outros juntos.

A acidez, obviamente depende do nível e do tipo

Quando é uma leve acidez, juntamente com algum outro fator citado acima, pode sem dúvida nos trazer algumas boas surpresas no envelhecimento.

Se a acidez é vigorosa ou até mesmo violenta, com uma certa estrutura, então podemos esquecer todos os outros parâmetros acima citados.

Cervejas com acidez acentuada é uma das poucas certezas que temos nesse mundo empírico de envelhecimento e maturação de cervejas em garrafa.

A evolução de uma cerveja ácida se dá muito pelo tipo de acidez presente, seja lática ou acética.

Cerveja com uma acidez do tipo lática (Lactobacillus e Pediococcus) mais acentuada se mantém no tempo, porém tem um poder de evolução sensorial quase zero, aliás com o tempo podem trazer notas não muito agradáveis a cerveja

  • Exemplos como Berliner Weisse e German Gose devem ser consumidas frescas.

Já cervejas com uma acidez mais acentuada do tipo acética (Brettanomyces e Acetobacter), além de se conservarem no tempo conseguem ter uma tremenda evolução em garrafa, desenvolvendo principalmente aromas de frutas amarelas maduras como abacaxi, uva branca, carambola e nuances “vinagrosos” e balsâmicos.

Oxidação da cerveja

A oxidação devido ao tempo de guarda é um outro fator muito importante.

A oxidação em uma cerveja normal, principalmente nas Lagers, pode trazer problemas de aroma e gosto lembrando papelão molhado, diminuindo muito a drinkability do produto.

Mas alguns estilos Ales com uma carga alcoólica e maltada elevada (principalmente caramelada) tem um desenvolvimento fenomenal com a oxidação.

De fato, estilos como Barleywine, Imperial Stout, Belgian Dark Strong Ale, Scotch Ale, Old Ales com o tempo desenvolvem nuances licorosos e vinosos, lembrando de vinho do porto, jerez, frutas em caldas e cristalizadas.

Cervejas de guarda: Quando não vale a pena envelhecer?

Se uma cerveja tem o seu ponto de força e equilíbrio no “frescor” como lógica devemos consumir ela o mais rápido possível, é um desperdício (e um insulto) fazer com que cervejas com alto frescor de lúpulo envelheçam.

Por exemplo: uma Pilsen fresca com notas herbais e não pasteurizada, se deixada envelhecer por alguns meses vira uma sombra daquilo que ela era quando jovem.

A perda de frescor se dá por várias motivos:

  • Pode ser tanto a perda aromática derivada do lúpulo usado no final de fervura ou em dry hopping,
  • Perda de ésteres de levedura em uma cerveja leve e com alta drinkability ou,
  • Perda de aroma e sabor das de especiarias que foram usadas.

Uma American IPA por exemplo, estilo muito comum hoje entre as cervejarias, tem como o seu ponto de força a exagerada carga de lúpulos aromáticos, e mesmo que seja dotada de uma certa estrutura e de um amargor vigoroso deve ser consumida o mais rápido possível

Uma cerveja desse tipo com um tempo de guarda amplo pode “apagar” ou talvez deteriorar os aromas dos lúpulos, perdendo assim, a sua razão de existir.

Cervejas de guarda: Qual, quando e como?

Se queremos realmente montar uma adega de cervejas “vintage” devemos então escolher estilos mais estruturados, complexos, alcoólicos e encorpados.

Quais? Muitas das cervejas alcoólicas belgas evoluem muito bem com o passar dos meses, uma Tripel por exemplo consegue ter uma boa evolução em até dois anos, mais que isso esse estilo começa a se “deteriorar” sensorialmente.

As Belgian Dark Strong Ale, como as Quadrupel por exemplo, muito alcoólica com um corpo e estrutura robusta é o melhor estilo belga para envelhecimento e evolução em garrafa.

Aqui entramos novamente no empirismo: na minha opinião por exemplo a Westvleteren XII é uma das cervejas de nível mundial que melhor envelhecem e evoluem em garrafa chegando a suportar até dezenas de anos, enquanto a Rochefort 10 também trapista e de idêntico estilo não tenha tanta evolução no tempo, talvez 3-5 anos no máximo.

Mesma coisa para as cervejas temperadas e alcoólicas natalinas belgas, sem dúvida tem uma evolução melhor que uma simples Belgian Blond, mas nem todas tem essa capacidade, somente algumas conseguem se desenvolver em garrafa.

O rótulo natalino mais famoso que suporta décadas de envelhecimento é a Stile Nacht da cervejaria De Dolle.

No mundo inglês também encontramos preciosidades que nos surpreendem com o passar dos anos, obviamente escolhendo sempre os estilos ingleses mais robustos como Old Ales, Barleywines e Imperial Stouts.

Alguns rótulos ingleses são intimamente ligados ao mundo do colecionismo e sobretudo ao mundo vintage, dois exemplos clássicos são Thomas Hardy’s Ale e Harveys Imperial Extra Double Stout, além de serem cervejas extraordinárias, tem uma vida longa!

Para todos os outros estilos e outras nações, tirando poucas exceções, bebam o quanto antes.

Cervejas de guarda: Como guardar?

Para a melhor conservação das garrafas tente deixar em lugar fresco, seco e longe da luz – se possível em um porão, mas caso a sua casa não tenha um porão, uma geladeira ou adega elétrica já está de bom tamanho.

Mantenha em uma temperatura constante de aproximadamente 10°C e 70% de umidade.

Cervejas de guarda: Lambic e cervejas ácidas

Toda regra tem a sua exceção, e no caso de envelhecimento em garrafa, se chama Lambic.

Mesmo sendo uma cerveja com um grau alcoólico relativamente baixo, com um corpo “fino” derivado do baixíssimo nível de açúcar residual.

Para a produção de cervejas de estilo Lambic são usados lúpulos envelhecidos de até três anos, esse envelhecimento faz com que o lúpulo perca um pouco sua capacidade conservante, seu amargor e aromas.

Por esse motivo são usados até cinco vezes mais lúpulos que em uma cerveja normal, assim elas conseguem ter uma longa conservação no tempo sem nenhum amargor e aromas de lúpulo.

Esse fator junto com a típica acidez acentuada do estilo faz com que a cerveja tenha uma evolução espetacular com o tempo.

Particularmente posso citar o estilo Gueuze, que não minha opinião necessita pelo menos quatro ou cinco anos de guarda para chegar ao seu ápice sensorial.

Algumas versões de Gueuze dão o melhor de si depois de uma década de garrafa, e se bem conservadas, mesmo depois de vinte anos podem nos presentear com algumas surpresas inesperadas.

Lambics com fruta, como a Kriek ou Framboise, podem ser consumidas mais jovens justamente para “colher” todo o frescor da fruta.

Lambics com adição de uva, como a Saint Lamvinus da Cantillon que levam uva Merlot e Cabernet-Franc, usam do benefício dos anos para o seu desenvolvimento.

Sempre no mundo das cervejas belgas ácidas, temos as Flamish Red Ales e Oud Bruin que conseguem ter uma vida em garrafa muito longa e próspera.

Experimente deixar pelo menos de dois a quatro anos de guarda uma Vichtennar di Verhaeghe ou uma Rodenbach Vintage, garanto que você não irá se arrepender.

Mesma coisa para outros tipos de cervejas ácidas, fermentação mista ou espontânea.

Cervejas de guarda: Conclusão

Velho nem sempre é sinônimo de “estragado”!

Cervejas leves, com pouco corpo e estrutura (geralmente Lagers) envelhecem antes e devem ser consumidas rapidamente.

Não vale a pena guardar uma cerveja pasteurizada independentemente do estilo, a pasteurização serve justamente para conservação ao longo tempo, mas não permite nenhuma evolução sensorial e organoléptica.

A pasteurização transforma as cervejas em “cadáveres em garrafa”.

É normal observar a data de validade de uma cerveja, mas também é importante saber o que ela significa!

A data de validade em uma cerveja artesanal indica o lapso de tempo no qual temos a garantia que o sabor da cerveja continuará invariável.

Quem determina essa data?

A própria cervejaria através de análises dos lotes que eles guardam ao longo do tempo.

A cervejaria italiana Baladin tem uma barleywine chamada Xyauyù que demonstra muito bem isso, no verso do rótulo dessa cerveja está escrito “Preferivelmente consumir até o fim do mundo”.

Uma boa bibliografia que recomendo é o livro: Vintage Beer: A master’s Guide to Brews That Improve Over time.

This Post Has 6 Comments

  1. Rodrigo Valério

    Tenho uma cerveja deus que venceu em outubro… ser a que compensa abrir ou deixa de enfeite mesmo?!?! :/

    1. Doug Merlo

      Olá Rodrigo, definitivamente não deixe para enfeite, deguste-a!!

      Você ainda tem 2 ou 3 anos para consumir esta cerveja, após este período ela perde sua complexidade.

  2. Pieter

    E as cervejas com rolha, guarda-las de pé ou deitadas?

  3. Lorena Abdala

    Olá! Tenho uma Rodenbach Caractere Rouge, que ficou um ano em guarda sem refrigeração, no entanto acabei a colocando na cervejeira q varia de -5 a -3 graus, há uns 5 meses. Eu poderia retirar para voltar para guarda fora? Ou o choque térmico pode estraga-la? Mesmo em temperatura baixa eu teria alguma evolução ?

    Abraços !

  4. André Guimarães Jr

    Boa noite! Estou me interessando nos últimos dias sobre envelhecimento / evolução de cervejas. Tenho uma Chimay tripel guardada já a quase 1 ano (a validade dela ainda vai até final de 2020). Essa seria uma boa espécime para de manter e fazer de “cerveja de guarda”?

    Peguei uma Belgium pale ale hoje artesanal, feita aqui na minha região (Recife/PE) e fiquei muito afim de guardar pra deixar lá evoluir. Ela tem um índice alcoólico baixo (5.5) e tem ibu de 30. Você aconselharia a guarda-lá? Obrigado!

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