Escola Cervejeira Belga – História e características

A Bélgica possui um território com 30.519 Km2 (área um pouco maior que o estado do Alagoas) e é neste pequeno país que encontramos uma variedade impressionante de cervejas dificultando até a catalogação das mesmas.

Os estilos de cervejas belgas são todos Ales (alta fermentação) geralmente com uma complexidade sensorial alta.

A Bélgica também foi um dos primeiros países a usar a cerveja na gastronomia, tanto para preparar pratos tendo a cerveja como ingrediente, quanto para harmonização em restaurantes.

As cervejas belgas são excepcionais com uma complexidade única, e elaboradas com métodos que combinam inovação, tradição secular e paixão.

A cerveja é quase tão antiga quanto à própria civilização e teve origem na mesopotâmia cerca de 9000 a.C.

No curso dos séculos a cerveja chegou até a Gália, atravessou o Egito e o Império Romano.

A cerveja naquela época era feita em casa e os primeiros “mestres-cervejeiros” eram mulheres.

As Abadias e Monges

Na idade média as abadias eram centros de sabedoria e cultura agrícola, criação de animais e alguns tipos de fabricações artesanais, das quais também a cerveja!

Os monges podiam beber pequenas quantidades de cerveja que eles mesmos fabricavam, e naquela época a cerveja era muito consumida devido à alta contaminação da água.

Na Europa meridional o vinho era a bebida quotidiana, então os monges que viviam nessa região se concentravam no cultivo da uva para a fabricação do vinho.

Na região Flaminga (hoje uma parte da Bélgica), o clima não era favorável para o cultivo de uva, então os monges locais se dedicaram a produção de cerveja.

Graças aos monges a produção de cerveja passou de uma atividade doméstica para uma real atividade artesanal.

Ervas e Lúpulos

Foi na idade média que as cervejas começaram a ser temperadas ou aromatizadas com uma mistura vegetal chamada “gruit”, em algumas cidades era obrigação o uso dessa mistura, que era comprada em lojas chamadas “Gruithuis”.

Mas as abadias, que eram isentas da obrigação do uso do “gruit”, começaram a usar outro ingrediente – o lúpulo, que ajudava a conservar a cerveja garantindo longa durabilidade.

No século XI a Abadia Belga Beneditina de Affligem teve um importante protagonismo na introdução ao cultivo do lúpulo na parte Flaminga da Bélgica.

Início da regulamentação da qualidade cervejeira

Em 1364, o imperador Carlo IV criou um decreto chamado “Novus Modus Fermentandi Cerevisiam”, que foi uma tentativa de melhorar a qualidade da cerveja com um “novo” método de fabricação que obrigava os cervejeiros a usarem cones de lúpulos secos.

O decreto deveria ser respeitado em todo o Sacro Império Romano das nações germânicas, na qual faziam parte as regiões belgas Barbante e Flaminga Imperial (Rijks-Vlaanderen) , que incorpora a região Leste do Rio Escalda.

Na parte Flaminga Baixa da Bélgica, que era a região do lado oeste do Rio Escalda, a obrigação do uso do “gruit” foi revogada, o que levou a uma diversificação da cultura cervejeira belga.

Então os cervejeiros da parte Flaminga Imperial e Brabante produziam cervejas lupuladas que duravam mais tempo, enquanto no resto da Bélgica continuaram a fazer cervejas com “gruit” ou ácidas (que era a única possibilidade que os cervejeiros tinham para fazer com que a cerveja durasse mais tempo).

Foi nessa época que nasceram as cervejas belgas de estilo Flamish Red Ale.

Nos séculos XVI e XVII foram criadas outras regras para garantir a qualidade das cervejas.

Na Baviera a Lei da Pureza (Reinheitsgebot) de 1516 especificava que a cerveja poderia ser feita somente usando como ingredientes cevada, água e lúpulo, enquanto na cidade de Halle na parte flaminga da Bélgica, existia já um decreto em 1559 fazendo referimento ao mosto da cerveja para a produção de Lambic.

Inicio da produção de cervejas belgas regionais

A partir do século XII, iniciou-se a produção de cervejas belgas regionais, como por exemplo a cerveja “gerstenbier” (cerveja de cevada) na cidade de Antuérpia, a “Leuvense Witte” (cerveja branca feita com trigo) da cidade de Leuven, as cervejas marrons acéticas (Oud Bruins) das cidades de Oudenaarde e Diest, e as cervejas chamas “caves” (cervejas envelhecidas em cantinas) da cidade de Lier.

A produção de cerveja na Bélgica em tempos de guerra

A Primeira Grande Guerra Mundial foi um golpe crucial para muitas cervejarias belgas porque as forças alemãs de ocupação confiscavam as tinas de fabricação de cerveja (que eram feitas de cobre), equipamentos e veículos.

Somente a metade das quase 3200 cervejarias sobreviveu.

Logo após esse fato, a crise econômica dos anos 30 (consequência aos efeitos da guerra) inferiu o golpe final nas cervejarias que vinham lentamente se restabelecendo.

Em 1946 existiam somente 775 cervejarias na Bélgica.

Nas décadas sucessivas numerosas cervejarias fecharam as portas devido a forte concorrência e do alto custo de investimento necessário para equipamentos mais modernos, enquanto as grandes cervejarias industriais consolidavam o mercado nacional.

Cervejas Especiais

Inspirados no movimento dos “Filhos das Flores” do final dos anos 60, as cervejarias começaram a redescobrir as cervejas especiais belgas que já tinham sido extintas ou perdidas no tempo.

Em 1977, o guru da cerveja Michael Jackson (1942-2007) acendeu a chama da atenção às cervejas belgas.

Isso trouxe um reconhecimento geral das cervejas e cultura belga nos anos a seguir.

Entre 1985 e 2000 começaram a emergir cervejarias de médio e grande porte, e foram abertas micro-cervejarias locais, sobretudo para a produção destinada a exportação, em alguns casos com fabricação de produtos exclusivos.

No início do século passado, o interesse pelas cervejas belgas autenticas só aumentou.

A indústria da cerveja na Bélgica pode se vangloriar de possuir algumas das mais famosas marcas de cerveja no mundo, além das cervejas trapistas com produção exclusiva nos monastérios e de algumas renomadas cervejarias locais familiares.

Em um primeiro momento as cervejas Lambic foram tendência, mas hoje existe também uma disseminação das cervejas flamingas (Flamish Red Ales e Oud Bruins)

As Cervejas Trapistas

A Bélgica é por excelência o país das cervejas trapistas, isso porque das 12 existentes no mundo metade delas fica na Bélgica.

Ainda hoje algumas são produzidas pelos próprios monges e representam um tradicional produto, exclusivo da Ordem dos Cistercienses Reformados de Estrita Observância.

As cervejas que são produzidas com o mesmo processo, mas fora das abadias da mesma ordem monástica, são consideradas somente cervejas de abadia e não podem ser consideradas trapistas.

Essas são as 12 cervejarias trapistas reconhecidas no mundo:

  • Chimay (Abadia de Notre-Dame du Scourmont) – Bélgica
  • Achel (Abadia de Notre-Dame de Saint-Benoit) – Bélgica
  • Rochefort (Abadia de Notre-Dame de Saint-Rémy) – Bélgica
  • Westvleteren (Abadia de Notre-Dame de St. Sixtus) – Bélgica
  • Orval (Abadia de Notre-Dame d’Orval) – Bélgica
  • Westmalle (Abadia Cistercense de Westmalle) – Bélgica
  • La Trappe (Abadia de Koningshoeven) – Holanda
  • Zundert (Abadia de Maria Toevlucht) – Holanda
  • Stift Engelszell (Abadia de Unsere Liebe Frau von Engelszell Cella Angelorum) – Austria
  • Spencer ( Abadia de Saint Joseph’s) – USA
  • Tre Fontane (Abadia di San Vincenzo e Anastasio) – Italia

Para serem consideradas cervejarias trapistas as abadias de seguir algumas regras:

  1. A cerveja deve ser fabricada dentro dos muros da abadia (mas pode ser envasada fora).
  2. Nessa abadia deve ser seguido o regimento da Ordem dos Cistercienses Reformados de Estrita Observância, ou seja, devem viver em sistema de clausura, fazer voto de pobreza, se sustentar com o trabalho das próprias mãos (devem cultivar e manufaturar o seu sustento), devem somente rezar e trabalhar (ora et labora), devem usar matérias-primas de altíssima qualidade para elaborar os seus produtos e o produto final deve também ser de altíssima qualidade.
  3. A produção deve ser feita ou supervisionada por um monge da abadia.
  4. A abadia não deve ter lucro com a vende dos produtos produzidos por eles, a arrecadação deve servir somente para o o custeio da abadia.

Estas são algumas das particularidades da Escola Cervejeira Belga, que encanta e fascina quem busca conhecimento sobre suas características.

This Post Has 2 Comments

  1. Marcus Santos

    Grande Doug. Primeiramente gostaria de agradecer por mais um belo artigo.

    Ressalto apenas que a francesa Mont des Cats não consta na lista das 12 cercejarias trapistas descrita por você.

    Forte abraço.

    1. Doug Merlo

      Grande Marcus,

      Poxa fico muito contente em saber que você le meus artigos, estou um tempo sem escrever por falta de tempo mesmo, mas com muitas idéias para novos textos.

      Só para te responder, a Mont des Cats consta sim como uma abadia produtora trapista, ela não possuí fabrica mas faz as suas cervejas na Chimay

      Conforme lista no site da Associação Internacional Trapista:

      http://www.trappist.be/it/pages/abbazie-birre-trappiste

      Um grande abraço meu amigo
      Doug

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